segunda-feira, 8 de junho de 2009

nothingsomething




CONVENIÊNCIA DE SER COVARDE

Há tempos, fui à Rua Bariri, ver um jogo do Fluminense. E confesso: - sempre considerei Olaria tão longínqua, remota, utópica como Constantinopla, Istambul ou Vigário Geral. Já na Avenida Brasil, comecei a sentir uma nostalgia e um exílio só equiparáveis aos de Gonçalves Dias, de Casimiro de Abreu. Conclusão: - recrudesceu em mim o ressentimento contra qualquer espécie de viagem. Mas, enfim, cheguei e assisti à partida. Nos primeiros trinta minutos, houve tudo, rigorosamente tudo, menos futebol. Uma vergonha de jogo, uma pelada alvar, que não valia os cinco cruzeiros do lotação. E, súbito, ocorre o episódio inesperado, o incidente mágico, que veio conferir ao match de quinta classe uma dimensão nova e eletrizante.

Eis o fato: - um jogador qualquer enfiou o pé na cara do adversário. Que fez o juiz? Arremessa-se, precipita-se com um élan de Robin Hood e vem dizer as últimas ao culpado. Então, este não conversa: - esbofeteia o árbitro. Ora, um tapa não é apenas um tapa: - é, na verdade, o mais transcendente, o mais importante de todos os atos humanos. Mais importante que o suicídio, que o homicídio, que tudo o mais. A partir do momento em que alguém dá ou apanha na cara, inclui, implica e arrasta os outros à mesma humilhação. Todos nós ficamos atrelados ao tapa.

Acresce o seguinte: - o som! E, de fato, de todos os sons terrenos, o único que não admite dúvidas, equívocos ou sofismas é o da bofetada. Sim amigos: - uma bofetada silenciosa, uma bofetada muda, não ofenderia ninguém, e pelo contrário: - vítima e agressor cairiam um nos braços do outro, na mais profunda e inefável cordialidade. È o estalo medonho que a valoriza, que a dramatiza, que a torna irresgatável.

Pois bem: - na bofetada de Olaria não faltou o detalhe auditivo. Mas o episódio não esgotara ainda o seu horror. Restava o desenlace: - a fuga do homem. Pois o juiz esbofeteado não teve meias medidas: - deu no pé. Convenhamos: - é empolgante um pânico assim taxativo e triunfal, sem nenhum disfarce, nenhum recato. Digo “empolgante” e acrescento: - raríssimo ou, mesmo, inédito.

Via de regra, só o heroísmo é afirmativo, é descarado. O herói tem sempre uma desfaçatez única: - apresenta-se como se fosse a própria estátua eqüestre. Mas a covardia, não. A covardia acusa uma vergonha convulsiva. Tenho um amigo que faz o seguinte: - chega em casa, tranca-se na alcova, tapa o buraco da fechadura e só então, na mais rigorosa intimidade - apanha da mulher. Mas cá fora, à luz do dia, ele é um Tartarin, um Flash Gordon, capaz de varrer choque de polícias especiais.

Pois bem. Ao contrário dos outros covardes, que escondem, que renegam, que desfiguram a própria covardia – o juiz correu como um cavalinho de carrossel. Note-se: há hoje toda uma monstruosa divulgação, que torna inexeqüível qualquer espécie de sigilo. E, logo, a imprensa e o rádio envolveram o árbitro. Essa covardia fotografada, irradiada, televisionada projetou-se irresistivelmente. E quando, em seguida, a policia veio dar cobertura ao árbitro, este ainda rilhava os dentes, ainda babava materialmente de terror. Acabado o match a multidão veio passando, com algo de fluvial no seu lerdo escoamento. Mas todos nós, que só conseguimos ser covardes às escondidas, tínhamos inveja, despeito e irritação dessa pusilanimidade que se desfralda como um cínico estandarte.

Nelson Rodrigues, 17/12/1955

[texto publicado na revista Manchete Esportiva – RJ]

2 comentários:

  1. Mas, fala a verdade, acho que ninguém nunca conseguiu "ver" o futebol como ele. Dramaticamente perfeita a descrição do cara sobre uma partida no subúrbio carioca. A grande matéria escondida na mediocridade. Salve Nelson ! um dos melhores presentes que ganhei. Só fica atrás do memorial do convento.

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